ESCUTATÓRIA
Rubem Alves
Sempre
vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado
curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar.
Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um
curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se
matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que
“não é bastante não ser cego para ver as árvores e as
flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre
como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os
olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e
matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar
dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê
porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora
não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as
flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem
num mar de idéias. São misturadas nas palavras da
filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de
existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são
as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a
cabeça esteja vazia.
Faz
muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás,
duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a
amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga,
nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste
gostam de fazer quando conversam umas com as outras é
comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais
bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de
produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos.
Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma
literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...)
Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas
contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames
complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca
acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato
comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim,
esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma
palavra de acolhimento na alma da outra que,
supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o
seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou,
então, uma história de sofrimentos incomparavelmente
mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos
da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter
ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que
haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a
gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar
um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo
que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não
fosse digno de descansada consideração e precisasse ser
complementado por aquilo que a gente tem a dizer,
que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas
mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado
por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem
as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a
manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância
e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho
um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados
Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor
protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num
programa educacional da Igreja Presbiteriana USA,
voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com
os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os
participantes, ninguém fala. Há um longo, longo
silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto,
diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se
estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para
não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio.
Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se
tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos
em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de
repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a
fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um
grande desrespeito. Pois o outro falou os seus
pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo
dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos.
Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É
preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo
logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira:
“Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não
ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava
nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua
(tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“
Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou
como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha
para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você
falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de
tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio
quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo
que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há
grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio.
Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça,
Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos
para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda.
Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz
onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de
silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me
deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de
manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia
comer pensando na comida. Também para comer é preciso
não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma
felicidade. Mas logo fui informado de que parte da
disciplina do mosteiro era participar da liturgia três
vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da
tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado
era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto.
Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando
vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz
mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma
mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos
bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio,
no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa
almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes
da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio,
nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um
vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento
era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se
fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia
nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de
ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre
pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava
providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada
fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus
irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez,
quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido,
percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As
pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu
comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o
silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de
pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a
gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a
ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se
referia a algo que se ouve nos interstícios das
palavras, no lugar onde não há palavras. E música,
melodia que não havia e que quando ouvida nos faz
chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que
todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas
de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de
Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy
musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar
- quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos
todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que,
talvez, essa seja a essência da experiência religiosa -
quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do
falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia
que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim
Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a
importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá
também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza
da gente se juntam num contraponto... (O amor que acende
a lua, pág. 65.)
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